quinta-feira, 4 de junho de 2020

Memórias de uma infância preta

Minha primeira lembrança de racismo foi com uns 7 anos, na Kombi que me levava da escola pra casa. Eu era nova ali e era extremamente tímida. Sentei num cantinho e fiquei lá, tremendo de vergonha. A menina de olhos azuis e cabelo bem loirinho era da minha idade. Estava na mesma série, mas não era da minha sala. Ela entrou na Kombi e não quis sentar do meu lado. A “tia da Kombi” pediu pra ela se sentar, já que outras crianças precisavam entrar. Ela começou a gritar e disse que não se sentaria do lado da neguinha do esgoto. Tinha nojo de favelada. Não me lembro da tia da Kombi falar nada, nem da reação das outras crianças . Na verdade só lembro do silêncio da única pessoa adulta ali...e do buraco que se abriu em mim, vergonha e vontade de sumir. Aí com uns 11 anos lembro do dia que fui tentar me enturmar com o pessoal do condomínio que morava. Tentar ter amigos, eu que era toda tímida e vivia no meu mundo solitário da pré-adolescência. O menino olhou pra mim e disse que tinha nojo do meu cabelo, porque devia feder, já que não era liso. Disse olhando pra mim, com cara de riso. Eu que acordava bem mais cedo pra minha mãe cuidar e moldar cacho por cacho. Que ia atrás de cremes pra deixar meus cachinhos lindos e cheirosos. Essas são algumas das lembranças que marcaram minha infância  e ainda ressoam por aqui. E dá-lhe anos de terapia pra gente lidar com insegurança e baixa autoestima. Quais suas lembranças de infância?


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Estado de Graça!

Vem de dentro. Lá de dentro. É como uma viagem. Micro, interna. Macro, materna.  De repente, luz! Que transformação linda e intensa. Pra mim, tudo tem sido lindo. Pois tudo tem sido aprendizado, rasgação, entrega. Cada enjôo, cada quilo a mais, cada mancha ou marca. Tudo é história e geografia do corpo, da vida, do espírito. Ser água é assim. É deixar a vida fluir dentro de mim. Fora de mim. Ventre de mim. Me sinto loba. Me sinto lua. Lua crescente. Brilhando cada vez mais. Emanando cada vez mais energia e vibração. Vibrando todas as águas. Dentro e fora de mim. Dentro do dentro de mim. O ventre é um mistério. O útero é nossa caverna sagrada. E lá dentro, quando o ambiente tá bem cuidadinho, com fogo aceso, água limpa, ar puro e terra úmida, a vida brota. O broto nasce e cresce e cresce e cresce. E é lindo cuidar dessa plantinha dentro da gente. É louco mesmo. A gente vira bicho, vira planta. Vira o que somos. Parte dessa grande egrégora ar-terra-fogo-água. Que viagem mais incrível tem sido essa das últimas 13 semanas. Saluba! Eu, você aqui dentro, meu compa e seu papai aqui fora. Tem sido puro amor, conexão, ancestralidade, diversão, tesão, negritude. É muita luz. É o estado de Graça!



sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Xondaro

Com você
         vou pro mato
                pro mangue
                pro norte

Com você
         faço fogo
         faço mate
         faço arte

Nosso caminho é vermelho
                         é preto
                         é ancestral

Quatro direções nos guiam
Quatro elementos nos unem
Um céu de estrelas nos alumiam
E água nos flui pelo mundo.

Sendo tua, sou cada vez mais minha
Pois você me inspira ser quem eu sou
Quem sempre lutei e sonhei ser.

Com você
         vejo flores no caminho
         caminho de terra
         pé no chão
         tambor na mão
         amor no coração

minhas raizes acharam as tuas
se embrenharam,
                        se emaranharam

Teu pêlo é ninho para minha pele
   Tu cariño es alento para mi alma
           Caranguejo de meu mangue Nanã
           Mergulhas comigo pelas águas profundas.


     

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Quando me vi Sangue


Quando me vi sangue
menina era
crua nua
cheia de medos e incertezas
quando me vi sangue
não sabia que sangue era
ingenuidade de criança
achei que tinha feito coco na calça
era sangue escuro
preto terra
lama saindo de dentro de mim
13 anos – número de Nanã
minha mãe
sangue lua despontando
ancestralidade
quando me vi sangue
me vi também
moça
mulher
negra
tantas dúvidas
tantos medos
medos que ainda vejo em mim
quando me vejo sangue
por muito tempo
meu sangue era pra mim
castigo
sujeira
fardo
não sabia quanta riqueza jorrava de mim
hoje me vejo sangue
me vejo lua
lua cheia, lua nova
me vejo conectada com a pachamama
viramos uma só
um só útero
quando meu sangue lama
se junta à lama terra
sinto todas as luas sangues
que já foram derramadas
e que ainda serão
quando me vejo sangue
me vejo terra
te vejo em mim
somos um grande útero
que pulsa
sem inicio meio ou fim.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Cariño


Gosto
gosto do simples em você
café, cheirin no cangote
sonhou essa noite?
Gosto de tua trama
nó simples, desenrolar
fluidez em olhos de águia
e pureza de criança
gosto desse amor que pulsa
livre, solto, intenso.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

golpe.

Sigo embalada pelas falas de Nilma Lino Gomes hoje mais cedo: "nosso nome é sinônimo de luta e resistência". Então, sigamos. Desafios, conhecemos desde cedo..desde vidas atrás. Sangue no zóio, fé no coração, firmeza na caminhada, foco nas ações. Vibro no amor, mas sinto que vem bomba por aí, coisa pesada mesmo. Mas sei que tenho, que temos força, temos culhão e culote pra encarar. Ninguém nunca ousou e nem ousará tirar minha liberdade, minha vitalidade, meu asè, minha arte. Isso carrego e protejo com unhas cheias de terra e dentes cheios de poesia e música. Temos uma legião ancestral que nos acompanha e sopra em nossos ouvidos a direção, as ervas, as raízes, as escolhas. Não temo, jamais temer. Já fui queimada, enterrada, afogada, amarrada. Aprendi a voar sem asas, sublimar, evaporar e voltar ao estado de estar. Sou água que escorre e que penetra. sou sopro da tempestade que segue. sou salamandra da grande fogueira. sou gota de mar profundo. sou grão de terra funda. sei sei e cada vez sei mais viver como bicho, como pedra, como estado bruto. sou morte e vida e morte. cheguei faz tempo e voltarei quantas vezes for preciso.

sábado, 2 de abril de 2016

No caminho de Ita, pedra Mãe.


Do alto da montanha
tudo é muito pequeno.
Os problemas inexistem
confusões desaparecem.
A mata é quem governa.
A vida é como um sopro
de vento
na relva fresca de orvalho.

No coração da montanha
Mata virgem
Tudo pulsa intensamente
as águas jorram
dos céus, das pedras, da terra
O fogo arde
Nos raios, nas fagulhas de vida
O ar purifica
Faz as asas voarem, as folhas planarem
A terra brota
Vida, vida por todos os lados.

Lá de dentro
me vi
bem de dentro
Medos de infância
dissiparam-se nos trilhos flutuantes
soltei e deixei-me ir
embalada pela brisa atlântica.
Sob meus pés
a lama me guiou.
Lama de minha mãe,
Tiyug
Nanã
vida quente
água e terra
Firmando meu pensamento
liberando apegos
decifrando sonhos
dessa vida e das que já se foram.

A grande montanha
O grande pai
A firme mãe
Marumbi
sempre presente
potente

pedra itá
apontando rotas ancestrais
oráculo de minhas raízes negras
lembranças guarani

Protegida estive
entre seus braços galhos verdes
sua placenta água cristalina
seu colo granito lama.

Morri
E na lama me enterrei
afundei as entranhas
Expurgo.
Dissolução.
Renascida voltei
saudando o sol por trás das nuvens
abraçando o vento sussurrante
firmando os pés na raiz terra
gozando o nascer nas águas de pedra.

Xee HA'EVEte.